12.15.2016

Atenas: uma democracia nada liberal

Quando comecei meu mestrado em Ciência Política em 2007, a mais interessante surpresa que tive, foi que, na disciplina de Teoria Política I, que versaria sobre o pensamento político clássico, haveria um tópico sobre a democracia ateniense. Se a teoria política contemporânea se converteu quase que completamente numa teoria da democracia liberal, parecia-me amplamente cabível ter algum conhecimento consistente sobre a democracia clássica. A palavra democracia, como tanta gente sabe, tem origem no grego e é traduzida equivocadamente como governo do povo. E o equívoco é duplo. Antes de tudo, cratos não significa governo, mas sim, poder. O radical grego para governo é arche, donde monarquia, autarquia, etc. Essa diferença sutil é importante porque diz que o sistema sociopolítico ateniense não propunha claramente um governo. Entendia-se como um método de tomadas de decisão sobre os assuntos públicos (politikos). Tais tomadas de decisão (e o poder sobre elas) estavam com o demos, que apenas eventualmente se constituía como corpo burocrático e ainda com prazo determinado. E não como uma burocracia responsável pelo processo de políticas públicas, ressalvadas as devidas diferenças que o conceito moderno de políticas públicas têm do seu correspondente na antiguidade clássica. Assim, a palavra cratos se relaciona muito mais à ideia de que tais processos eram de prerrogativa direta do demos e não de um corpo burocrático, ou algo que o valesse. O segundo grande equívoco é a tradução da palavra demos como povo. Esse equívoco é ainda mais grave, pois não há nenhuma correspondência, visto que a palavra “povo” passa a ter o significado corrente depois do século XIX , com a consolidação das sociedades de massas. O demos era o agrupamento de homens livres das polis gregas, corpo devidamente excludente, do qual estavam necessariamente fora as mulheres, os escravos e, na maior parte das vezes, os estrangeiros. O conhecimento superficial (às vezes vomitado mesmo por cientistas políticos) sobre a democracia ateniense tende a considerar que essa formação sociopolítica só fora possível graças à exiguidade do “eleitorado”, que alijava do seu corpo as mulheres e que se fundamentava economicamente num sistema escravagista. O tamanho pequeno em relação à sociedade era o que possibilitava a realização do seu instituto fundamental, a democracia direta. Daí a ideia de que o sucesso se dava por isso. Há alguma verdade nisso, quando pensamos na aplicação de democracia direta para a tomada de decisão sobre assuntos públicos contemporâneos. Inclusive, esse instituto tende a ser rechaçado, justo porque ele parece levar ao dualismo e sequentemente ao totalitarismo. Mas a noção de que a democracia grega era o seu procedimento de escolha é muito insuficiente e está subordinada à problematizações contemporâneas. A democracia ateniense, o modelo mais bem realizado da democracia clássica, tinha duas características basilares. A primeira era socioeconômica: o demos era composto de médios produtores rurais e comerciantes urbanos. Se fosse possível calcular o Gini da renda do demos (não se trata, como vimos, de toda a sociedade ateniense) ele deve ter sempre sido muito próximo de zero. A segunda característica é sociocultural: a formação intelectual do homem grego, mesmo o das sociedades não democráticas, era abrangida pelo conceito de Paidéia. Sob algum risco de incorrer em simplismos, era uma formação que visava ao crescimento individual por meio da participação nos negócios públicos (politkos). Fosse numa versão militarista como a espartana, ou numa versão civil como a ateniense, a noção de indivíduo na Grécia, quase sempre se subordinou ao coletivismo, ou ao comunitarismo, ou, mais grego ainda, à política. O homem grego era iliberal. Soa certamente incômodo a ideia de iliberalismo atualmente. Nas sociedades de massas, o iliberalismo seria justamente a ideia de que minorias podem ter direitos civis reduzidos. Ou, num fluxo contrário, o liberalismo é o que garante que as minorias políticas tenham algum direito à expressão. Isso, dentre outras coisas, justifica-se pelo fato de que a complexidade das sociedades contemporâneas tende a acabar com as especificidades de certos cidadãos e grupos sociais. E o princípio majoritário, certamente, é um elemento que procura acabar com elas; daí a necessidade do adjetivo liberal e, principalmente, da realização da ideia para qualificar a democracia atual. Mas o ponto fundamental é que a sociedade ateniense não tendia a gerar minorias políticas no sentido mais próximo ao identitário, pois tanto era uma sociedade fundada culturalmente em princípios coletivistas, quanto era um agrupamento (demos) economicamente equilibrado. Sendo assim, o que fica é a necessidade de se entender o funcionamento da democracia ateniense vis-à-vis sua congênere contemporânea. Há uma tendência de qualificar axiologicamente a democracia como forma superior de organização política. Não há muitos defensores sérios de qualquer ideia contrária. Mas o fato é que entender a democracia liberal como fenômeno e, principalmente, necessidade do nosso tempo é uma forma interessante de legitimá-la e em sequência rebater certos argumentos contrários a ela, ainda que esses não sejam realmente sérios. Portanto, entender o quão iliberal era a democracia ateniense, a realização de uma ideia em outra época da história da humanidade, e, principalmente, os condicionantes que levavam ao iliberalismo, é entender a necessidade de realização do liberalismo na democracia que vivenciamos.