1.02.2017

Tomates, melancias e economistas: Por que economistas de mainstream nunca deveriam sair de casa?

Restrição orçamentária virou uma expressão fácil na boca dos economistas de mainstream que defendem as reformas constitucionais de mudança do regime fiscal e da previdência brasileiros. Já indo para o final, a coisa ficou tão tosca que, ao ouvirem que há um conflito distributivo que definirá o quanto o Estado vai comprar de canhão e o quanto vai comprar de manteiga, e que na verdade é esse o ponto de toda a discussão sobre essas mudanças, eles respondem com uma modelação matemática, chamada função-objetivo.

A função-objetivo é aplicada, por exemplo, quando um agricultor tem que decidir o quanto deve plantar de tomate ou melancia, para obter resultados ótimos do seu trabalho. A técnica serve para iluminar o agricultor sobre esse processo decisório. Supor que esse tipo de matematização é uma definição possível de conflito distributivo só seria válido se os tomates e as melancias trabalhassem deliberadamente a fim de influenciar as decisões do agricultor. Só que no mundo real, caberá só, e somente só, ao agricultor, a decisão sobre o que e como ele vai plantar; tomates e melancias não contam. Não interessam as opiniões que tais frutos tenham sobre nada. Aliás, nem opiniões eles são capazes de ter. Com o perdão da insistência, parece ainda necessário dizer que grupos de seres humanos, reunidos sob algum tipo de interesse não podem, em nenhuma circunstância, ser comparados a tomates e melancias. Nenhuma!

Numa sociedade, tais grupos se movimentam a fim de ficar com a maior fatia possível do bolo da redistribuição e, conversamente, dispender a menor quantia possível para a feitura do bolo da arrecadação. Isso é uma definição mínima da ideia de conflito distributivo e não há função-objetivo que seja capaz de resolver o problema. E restrição orçamentária é meramente uma das condições sob as quais se dá tal conflito. Nunca poderá ser a panaceia justificadora da supressão de direitos sociais, por exemplo.
A Economia é a ciência da administração dos recursos escassos. Quando ela, na sua faceta positivista, procura entender como se dão a produção e a administração dos recursos de uma família, e na normativa influencia as decisões que levam à maior eficiência na alocação de recursos, há algum sucesso. Mas os economistas, por problemas graves na sua formação como cientistas sociais (a Economia é uma das humanidades, independente do seu caráter aplicado), resolveram admitir que a sociedade é uma família. Esse equívoco tem um problema basilar. Sociedades não são famílias, são tremendamente mais complexas. E, acima de tudo, têm processos de tomada de decisão na administração dos recursos essencialmente diversos das famílias. Nessa, as decisões sobre as superações das realidades impostas pela escassez cabem a poucas pessoas. Em geral, uma ou duas no máximo. Nas sociedades, isso não se dá de forma alguma. A ilusão certamente advém da transmutação do Estado no grande tomador de decisão sobre a administração dos recursos escassos, numa operação que se pretende filosófica, mas que não passa de figura de linguagem. Estado é só, e somente só, uma metonímia. E embora a Filosofia Política não tenha se dado conta disso inicialmente, o Estado é um instrumento, que na problemática da escassez, é utilizado para retirar recursos das famílias e depois distribuí-los de volta às mesmas famílias. Contudo é completamente óbvio o caráter assimétrico desses dois processos. O Estado não tira (aí, por efeitos didáticos, a metonímia que personifica o ente, faz sentido) dinheiro das famílias de maneira igualitária, e muito menos assim o distribui. E se esses processos são assimétricos, o que deve ser entendido é o que define essas assimetrias.

Portanto, não há a possibilidade de economistas entenderem, por meio de microeconomia, ou por meio de uma macroeconomia que apenas é microeconomia com mais homens econômicos (ha ha ha), se não lançarem mão de forte entendimento de política. Aí só muita Ciência Política na cabeça e no coração. Quando fiz estágio docência, na época do mestrado, ministrei parte de um curso de Introdução à Ciência Política a uma turma de Ciências Econômicas. O desdém com a matéria foi notável, mas não me comoveu, dado que era uma turma de repetentes de um curso noturno. Mas em debates recentes com economistas (do mainstream, porque os heterodoxos parecem ter um pouco mais de noção que a coisa não funciona como a microeconomia gostaria) notei que há desconhecimento de noções até muito básicas de CP. No que respeita a esse artigo, o mais grave é o desconhecimento mínimo do complicadíssimo processo de políticas públicas, coisa que a Ciência Política vem tentando destrinchar há décadas; empresa que produziu vasta literatura, tanto teórica, quanto empírica, num subcampo chamado Análise de Políticas Públicas. Nele, há muitos textos descrevendo, analisando e teorizando sobre todas as etapas do processo, textos retirando alguma das etapas, textos incluindo etapas, textos subdividindo etapas, textos subvertendo o sentido das etapas, textos negando tudo o que tinha sido escrito antes e por aí, vai. Tudo procurando entender a forma como se dá um dos processos possíveis da redistribuição que o Estado (lembre-se sempre, metonímia) faz das riquezas que retira das famílias por meio de políticas públicas. Mas aí, vem um economista de mainstream dizer que a decisão governamental é mera vontade dos governantes ou, pior ainda, que o Estado é apenas um coordenador dessa distribuição. E isso nessa altura da linha da História.

Por isso, não se pode dizer outra coisa: o radical grego que dá origem a eco significa casa. Portanto, economia quer dizer basicamente o regramento da casa. E aí, a assertiva do título é inevitável. Como tomates e melancias não pensam, não reagem, não têm interesses, enfim, são incapazes de fazer política, tais frutos representam o tipo de ator político que não cria garabulhas cognitivas nos economistas de mainstream.