5.02.2018

Será possível uma micropolítica?

É pertinente dizer que a Ciência Política tem o seu germe mais robusto com o nascimento do Estado nacional, entidade que começou a se formar na Europa quando a dinastia de Avis expulsou os últimos árabes que dominavam o oeste da península ibérica no século XIII e fundou Portugal. A novidade, que se consolida na Europa com a Reconquista no resto da Ibéria (Espanha) e com a finalização das Guerras dos Cem Anos (França e Inglaterra) e dos 30 anos (Países Baixos), foi retumbante na forma de pensar as relações de poder, que desde sempre permearam a vivência coletiva humana. Com o rescaldo da descentralização em arremedos de estados nacionais, quase tribais numa acepção moderna, fundados em algum tipo de moral política muito associada à religião, as coletividades passariam agora a se reunir em torno de um ente que organizaria a economia, a burocracia pública e, fundamentalmente, a guerra, em termos raramente vistos antes. O pensamento político moderno, por sua vez, preocupa-se no início com a questão da legitimidade dessa forma de poder, mas prioritariamente com as regras sobre as quais se estabeleceriam os princípios do funcionamento dessa coletividade. Logo, o pensamento político do começo da modernidade é uma ontologia do Estado Nacional. Primeiro o Jusnaturalismo, que preocupado em dar legitimidade a essa nova formação, justifica seu poder, entendendo que ele se fundamenta na mudança da vivência coletiva sob um estado de natureza para um estado civil. Seja na versão absolutista de Hobbes, seja na versão liberal de Locke, o jusnaturalismo é uma filosofia de legitimação do Estado: da sua preponderância na primeira versão e dos seus limites, na segunda. Filosofia alternativa é proposta por Maquiavel, que, superando as questões de legitimidade, propõe as bases filosóficas do positivismo/realismo análogas ao que posteriormente Descartes chamaria de método científico. De qualquer forma, o pensamento maquiaveliano tem uma proposta de legitimação, apesar de essa ser a da tomada do Estado e não a do próprio Estado, coisa que ele considera, muito como recurso heurístico, um dado da realidade e de forma nenhuma uma elaboração social. Em suma, é em torno do Estado Nacional que se organiza o pensamento político moderno. Andando na História, a Ciência Política, como ciência no século XX, também centra no Estado Nacional, esse ente agora com feições um tanto diversas das do início, a produção do seu conhecimento. Mais contemporaneamente ainda, é sobre as instituições públicas, principalmente as das formas poliárquicas de organização da sociedade que a Ciência Política fundamentalmente versa. É certo que a política, embora tivesse seu locus clássico de manifestação dentro do Estado, perpassava toda a sociedade, na medida em que os grupos dentro dela seriam os atores a disputar o jogo. Assim, mais do que o estudo do próprio Estado, a Ciência Política definiu como o seu objeto efetivo, as disputas pelo controle e manutenção das instituições, pois seria por meio do controle dessas que os atores do jogo político guiariam os resultados para a satisfação dos seus interesses. Ou numa terminologia mais verossímil, seria por meio do controle das instituições governamentais, que os grupos fariam o processo de políticas públicas resultar no aumento das próprias benesses. E por tratar de algo tão amplo, chamemos o final de todo esse desenvolvimento de macropolítica. Em suma, isso sempre foi tão forte no pensamento da humanidade que não é trivial entender a palavra política e as suas derivações dissociadas do Estado e do jogo da sua conquista. E para problematizar esse reducionismo, recorramos novamente à Grécia clássica, lugar e tempo onde se originou a política, ou para evitarmos confusões, a esfera pública. Não há de se duvidar que, como já vimos antes, falar em política na Grécia Clássica era falar de negócios públicos. Mas vimos também, que, por formação intelecto-cultural, o homem grego teria certamente dificuldades de se entender como tendo negócios privados tão dissociados dos públicos, como o homem pós-renascentista. Mas fora do demos, a sociedade grega não era nem um pouco democrática ou liberal. As mulheres geralmente eram confinadas à casa e ao exercício do papel materno e ainda havia escravidão. Nesse sentido, um jogo político fora do demos estava necessariamente determinado pela forte lógica hierárquica da oikos (casa) que fazia o fluxo do poder seguir do patriarca para baixo. O poder é uma relação social entre, pelo menos, duas partes, na qual uma delas só se comporta (pensa, toma posição, age) por causa da outra. É oportuno dizer que há poder em qualquer tipo de relação entre seres humanos. Isso não é dizer, todavia, que a política, entendida como o jogo que visa a resultar na dominação de uma das partes pela outra é o aspecto fundante de todas as relações. Há uma miríade de outros aspectos e se a política fosse o único fundamento possível, a vida em sociedade certamente seria insuportável. Se serve como ilustração, vamos pensar em dois amigos que, num belo dia, saem para bater papo. Um deles é musculoso, o outro franzino. Eles começam uma discussão sobre algum assunto e se veem com opiniões diametralmente opostas. Se o mais forte quisesse, poderia impor a sua opinião pela força, ameaçando o outro de uma agressão, por exemplo. Um dos motivos por que ele não o fará (normalmente) é justo o fato de que os laços fraternos entre os dois são mais importantes para fundamentar a relação do que o desequilíbrio (assimetria) das forças físicas. Genericamente, o instrumento que propicia esse desequilíbrio podem ser vários, mas o ponto fundamental é que a sociedade e a civilização se desenvolvem no intuito de criar elementos que dirimam a importância da política nas relações mais pessoais, justo porque o princípio de funcionamento da política, novamente entendida como o jogo de que se falou acima, é a violência. Daí o direito, a ética, a cultura, a fraternidade, o amor, etc. Entretanto, dizer que o poder não é o fundamento das relações humanas, não quer dizer que ele não seja importante ou até mesmo definitivo em grande parte dessas relações. Um problema no nível epistemológico da Ciência Política para entender ou mesmo reconhecer isso é que essa ciência, e o motivo disso é inicialmente pertinente, modelou a sua unidade de análise como o grupo político, ou o ator político, ou até o homus politico. Esse é um maximizador de poder, análogo ao maximizador de lucros da teoria econômica, evidentemente numa versão bem rasteira. Não se poderia então, por meio dessas assunções entender qualquer relação em que os seus participantes suprimissem o propósito político em favor de algum outro. Ainda sobre isso, o mais problemático é que a maior parte dos Cientistas Políticos não entende que a escolha pelo individualismo é o resultado de um processo social não tão dificilmente inteligível e não uma realidade dada, nem sequer um imperativo categórico. Talvez esse mau entendimento, derivado certamente de má formação filosófica, seja fundamental para que se produza Ciência Política da macropolítica tão ruim no Brasil, resguardadas as brilhantes e necessárias exceções. E isso resulta em coisa ainda pior. Há muito tempo, vi um Cientista Político, atualmente professor de um renomado departamento, fazendo um comentário sobre futebol. Ele disse que era irracional (e cientistas políticos ruins, usam argumento de autoridade para falar de racionalidade) que as torcidas de Náutico e Santa Cruz torcessem (sic) contra o Sport, porque o Sport bem posicionado era um incentivo para que Náutico e Santa Cruz tentassem se posicionar bem da mesma forma. O conteúdo da sentença é tão ridículo que não precisa ser discutido. Mas usar escolha racional para entender decisões de torcedores de futebol é uma das coisas mais estapafúrdias que se pode fazer. Fundamentalmente porque, como dito no artigo anterior, não há racionalidade (no estrito sentido utilizado pela CP) nenhuma em torcer pra um time de futebol. Sendo assim, é completamente artificial e por isso limitada no entendimento mesmo da política, a versão contemporânea e de mainstream da Ciência Política, tanto no nível metodológico, quanto no temático. E só será um bom cientista político aquele que reconhecer as insuficiências da própria área e entender os propósitos dela, que são inescapavelmente parcimoniosos. De qualquer forma, se o arcabouço teórico da Ciência Política aparentemente não oferece muitas alternativas para um entendimento da micropolítica (o que não é necessariamente verdadeiro), não é difícil encontrar tais alternativas na Filosofia Política. O jusnaturalismo nas suas duas versões mais importantes, hobbesiana e lockeana, parte do indivíduo, de um pretenso indivíduo em estado natural. Ou seja, antes da tentativa de legitimação das instituições da vida social, há indivíduos sem o peso ou a ajuda delas, que travam relações claramente políticas. E mais, o pós-modernismo (e assumo aqui a minha implicância com essa visão de mundo e o desconhecimento de muitos detalhes do que ela propõe, mas tenho a impressão de que posso falar dela, porque entendo muito bem a visão de mundo que ela intenciona superar: o modernismo) conseguiu mapear, mesmo sem intenção, os loci onde a micropolítica se dá com mais força: questões identitárias clássicas, de gênero, corporativistas, familiares, discursivas, etc. E aí, voltamos ao arcabouço teórico-metodológico da CP, despido devidamente das suas hipertrofias sobre o papel das instituições externas e formais e do seu paradigma fundamental, a saber: o racionalismo superficial e pedante, que se acha capaz de explicar tudo, inclusive o futebol. Substituem-se todas essas inutilidades pela proposta weberiana, que é um individualismo metodológico sofisticado, preenchido porém pela estrutura axiológica, não a de uma pretensa coletividade, mas a que opera sobre o próprio indivíduo. E aí, um adendo é necessário. Maquiavel fez seu individualismo metodológico enquanto contava umas anedotas n’O príncipe, e focando um tipo específico de ator social, o homem que tenta tomar (ou manter) o Estado, conseguiu claramente apresentar a estrutura axiológica que opera sobre esse tipo de indivíduo, a saber: a imoralidade no que concerne aos meios da ação. Assim, rejeitando a confusão cognitiva promovida pelo pós-modernismo para entender a política, como da mesma forma e com mais veemência o superficialismo racional dos Cientistas Políticos mal formados em Filosofia do Conhecimento, seria interessante que levássemos em conta a proposta weberiana como alternativa para o entendimento das relações mais imediatas entre seres humanos. E talvez todas as outras.