8.24.2021

A tragédia da Paz Democrática

É no contexto da diminuição da tensão militar entre Estados Unidos e União Soviética decorrida da Détente na década de 70/sec-XX, que é possível entender o surgimento da Paz Democrática como programa de pesquisa na Ciência Política Americana (CPA). As questões militares (as mais diretas) entre as duas superpotências estavam arrefecidas e o embate ideológico, em termos de confronto claro entre visões de mundo, restabeleceu-se definitivamente, ganhando “corpo”. De um lado, um modelo de mundo que preconizava uma sociedade progressivamente igualitária, em que o coletivismo seria o fio condutor do desenvolvimento humano, mas um modelo de mundo sem muitos espaços para a auto-contestação pacífica. Do outro lado, um modelo de mundo que preconizava uma sociedade livre, em que indivíduos livres, por meio do método democrático fundado no princípio majoritário, teriam muitas liberdades, inclusive a de contestar o próprio modelo (a extrema direita ocidental dos nossos tempos adora essas liberdades, lembremos!). 

É justo nesse ponto da História que elementos da CPA descobrem/inventam “a coisa mais próxima de uma lei empírica” da disciplina que eles chamavam de Relações Internacionais, a saber: democracias modernas nunca estiveram em lados opostos numa guerra. O programa de pesquisa estava dado, a partir dessa “realidade” empiricamente incontestável, a de que democracias causavam paz. 

Sendo um pouco mais crítico, o desenho de pesquisa proposto era, na verdade, bem retardado. Pegaram um período de 20 ou 30 anos da História da Humanidade (que depois do primeiro escriba cuneiforme, já tem uns 15 mil anos de muito sangue derramado, cabeças decapitadas, intestinos eviscerados, estupros e escravizações em massa), observaram uns países, já definidos previamente pela Teoria Democrática como “democracias liberais”, dadas algumas comunidades entre as respectivas formas de organização política e chegaram “à coisa mais próxima de uma lei empírica” das Relações Internacionais. O nome é sugestivo: Teoria da Paz Democrática. Disso começaram a se perguntar sobre os porquês desse fenômeno tão sui-generis.

Primeiro, como todo bom programa de pesquisa nas humanidades, foram à Filosofia. E acharam Imannuel Kant, o iluminista mais virgem de todos, que tinha escrito um livro já no final da vida, cujo título era “A paz perpétua”. E lá estava escrito, mediante aquelas conclusões bem kantianas sobre o cosmo, que a paz no mundo seria alcançada depois que todas as sociedades fossem livres da sanha marcial dos seus governantes e, assim, os seus partícipes, livres para exercer a racionalidade, escolhessem como se daria a política entre as nações/Estados. E evidentemente, um ser racional sempre escolherá o caminho da paz... perpetuamente. Ou seja, como todo péssimo programa de pesquisa nas humanidades, os proponentes da Paz Democrática foram à Filosofia de maneira anedótica, como se para justificar intelectualmente as porcarias que iam começar a escrever. 

A História caminha e no início da década de 90/sec-XX,o modelo de mundo, cuja realização a CPA nunca quis compreender seriamente, ruiu de forma dramática. Logo, alguns ideólogos norte-americanos resolveram decretar que a História (perdão pelo H maiúsculo, mas...) tinha chegado ao fim. O modelo de mundo que se definia como Democracia Liberal (DL) tinha vencido aquele embate ideológico; por walkover, é bom dizer. Assim, numa versão norte-americana do Darwinismo Social, esses mesmos ideólogos chegaram à conclusão de que era a DL o ápice do desenvolvimento político de todas as sociedades. E agora a Teoria da Paz Democrática já tinha uma receita bem elaborada para apressar o advento desse mundo, pois ainda havia sociedades recalcitrantes, que teimavam contra a evolução implacável – por responsabilidade dos seus governantes autocratas, ditadores, tiranos, etc. Com a máquina de guerra mais poderosa que a humanidade já viu na vanguarda, a DL poderia ser exportada. Mas a década de 90 até que foi tranquila e a Política Externa Americana (PEA) seguiu espalhando o modelo político e o neoliberalismo (como modelo de política econômica) pelo globo de forma relativamente pacífica, pois por que onerar norte-americanos com impostos de guerra, quando se tinha o Fundo Monetário Internacional, não é verdade? 

Embora a História tivesse chegado ao fim, Ela continuou andando. E aí o século XXI já começou pegando fogo e demolindo uns prédios, quando um bando de wahabitas sequestrou três aviões, jogando-os contra alvos dentro do território da Democracia Liberal mais bem realizada, segundo seus próprios ideólogos, o que abalou todo o ocidente. O fim da História mal tinha durado 10 anos. Rapidamente, a Teoria da Paz Democrática assumiu sua faceta normativa como teoria de Segurança Internacional da Doutrina Bush, deixando de ser o fundamento retórico da Doutrina Clinton, para justificar as intervenções no Afeganistão (embora os wahabitas fossem quase todos súditos da família Saudi, uma família amiga) e no Iraque de Saddam Hussein. Segundo essa nova versão, esses dois Estados precisavam conhecer a DL. O Irã também foi sondado para receber a benesse, mas essa empresa pareceu não valer muito a pena, nem para a administração Bush, nem para a administração Obama, o primeiro presidente americano negro a matar civis sírios com caças Predator na História.

Soma-se a esse intento da PEA, o furor da administração Obama, quando no Norte da África, governos autoritários, porém laicos, começaram a ser contestados por seus cidadãos, que clamavam por mais liberdade. Alguns desses cidadãos queriam ter a liberdade de apedrejar mulheres adúlteras até a morte e decapitar homens que amavam outros homens. E foram esses, um pouco mais organizados do que os seus colegas democráticos, plurais e, portanto, difusos, que prevaleceram no que se chamou, num surto de histeria coletiva típico de elementos que preferem guiar a sua ação política mais por princípios éticos e morais e menos por cálculos das reais capacidades políticas e militares dos atores que estão no jogo, de Primavera Árabe. A coisa se espalhou pelo Mundo Árabe, chegando à Síria, onde Barack Obama e François Hollande resolveram armar e financiar a oposição contra Bashar Assad, que clamava por mais liberdade, oposição esta hegemonizada desde sempre por guerreiros da liberdade, que depois de matar seus antigos colegas de oposição ao governo Sírio, fundaram o Estado Islâmico do Levante, um Estado onde era clara a liberdade do governo em trucidar etnias não sunitas e mesmo grupos não-wahabitas. Quem tiver um estômago bem libertário pode procurar essas ações pela internet. 

É muito comum a ideia de que a Paz Democrática, i.e. a declaração de intenção pró democrática da PEA, é mero embuste utilizado pelas administrações norte-americanas para justificar emprego de força militar no exterior. Não se pode negar algum sentido nessa assunção. Idealismos servem para a mobilização de um público, mesmo que as motivações dos agentes que os usam sejam menos “nobres”. Mas isso não nega o caráter normativo da Paz Democrática como teoria de Segurança Internacional, aliás, até enfatiza. Por outro lado, a democracia, ainda que seja como método, foi vivenciada no Afeganistão e no Iraque. Afinal, houve eleições com uma série de partidos concorrendo, com formação de legislativos e de governos, dentro de regras minimamente respeitadas pelos atores em jogo. Talvez essa última frase contenha alguma ironia e eu precise alertar que a morada de Satanás está justamente nos detalhes, mas certamente a ironia não supera o fato de que o fracasso de se incentivar o surgimento da democracia (seja qual for o meio utilizado com esse intento) foi notável pelo aumento da violência que se sucedeu a esses incentivos, tanto nos países abençoados pela Primavera Árabe, quanto no Iraque, depois “anexado” ao Estado Islâmico do Levante, tornando-se o ISIS. 

E aí, chegamos aos últimos dias, quando o Talibã cercou Cabul e os norte-americanos fugiram de novo com o rabo entre as pernas de um país cuja política doméstica foram avacalhar em nome de algum ideal obscuro e iluminista (e impreciso) de liberdade – tanto no início da década de 80-sec XX, quando em 2001 – e nesse caso, depois de tutelarem uma democracia, ainda que apenas no método, em que concorriam partidos permitidos pela PEA. A expectativa inicial de um banho de sangue sectário, felizmente até agora não se deu, mas já ficou o altíssimo custo de vinte anos de banho de sangue e dinheiro. 

E se vale como um post scriptum, a utilização da analogia da forma literária que se consolidou na democracia ateniense no século V a.C., reconheça-se, é um clichê. O teatro ateniense tinha uma clara missão didática, que recomendava o controle do pathos, já que era o pathos a situação que levava os personagens a se envolverem em histórias de violência e sangue. As historinhas da Política Externa Americana acima contadas são de violência e sangue. O que arrisca tornar inválidas as analogias com a tragédia são a quantidade de violência e sangue, vultuosa como nunca se viu antes e a falta total de aprendizado.

7.07.2019

Heitor, a única possibilidade ética da política

O homicídio de Heitor, o vilipêndio de seu corpo e a exposição do seu cadáver insepulto a cães e aves rapaces, atrocidades perpetradas pelo terrível Aquiles Peleida, são a maior injustiça homérica. Ainda maior do que a degolação de Pátroclo, que, pela temeridade adolescente, mereceu o seu destino. 

O adjetivo homérico é sinônimo de hiperbólico. Diz-se que a Guerra dos Mascates, uma escaramuça, foi um conflito homérico. Uma prova do apego incondicional do recifense à megalomania. Tal equívoco linguístico escamoteia o fato de que a verdadeira bíblia da humanidade é a Ilíada e não os livros de uma obscura seita oriental, nem os da sua mais famosa superstição, a saber: o Falaz Messias Nazareno e seu martírio.

 A verdadeira bíblia conta a história de três homens. A do irresponsável Paris, que por amor, além de Helena, a mais livre das mulheres, trouxe a desgraça da guerra ao seu pai e ao seu povo; a de Aquiles, que só porque era capaz disso, queria destruir tudo desde que isso lhe trouxesse fama; a de Heitor, o homem mais responsável que existiu. Heitor era o príncipe de Ílio, filho de Apolo e seu maior sacerdote. Censurava Paris, pois lhe atribuía a culpa dos atos ignominiosos de Agamenon (o infanticida que degolou a própria filha para satisfazer a lascívia de uma atroz financiadora de sua campanha). Agamenon queria por as divinas muralhas de Troia abaixo e matar a todos os troianos. Graças aos malignos artifícios de Odisseu (que fora devidamente castigado por Posido durante treze anos) triunfou nesse objetivo iníquo, mas evidentemente, só depois do que aconteceu a Heitor. Esse tinha um lema de vida, exposto em um terceto: ame o seu país, honre o seu pai e respeite os deuses. Paris não tinha país. Fora mandado ao exílio ainda bebê e se esqueceu de onde vinha. Aquiles era um homicida irado. Foi o primeiro bárbaro da história. Ia aonde estava Ares, o confuso.  

E por isso é Heitor quem apresenta a melhor definição normativa do que é a política, isto é, o primeiro e único verso da sua epopeia. Política se faz com uma ética de responsabilidade pública. Maquiavel, a reencarnação renascentista de Heitor (de fato ele veio um pouco pior, embora o florentino fosse uma ficção da Teoria Política) escreveu o seu Príncipe, no qual ele estranhamente ignora Heitor, preferindo Eneias, e no capítulo derradeiro dessa obra, exortou Lourenço de Médici à luta contra os bárbaros que ameaçavam a Itália. Lourenço só era magnífico nas bajulações maquiavelianas. Não leu O Príncipe, e a Itália se manteve uma terra de desordem por mais trezentos anos. 

Heitor Homicida sucumbiu, ignorando o fato de que Hécuba nomeara seu monstro, frente a Aquiles, o terrível, o matador de homens. Além de artifício das Moiras, os motivos da derrota de Heitor para Aquiles são óbvios; enquanto esse último, por ter Agamenon lhe negado um troféu apolíneo, mas que ele entendia afrodisíaco, passou mais de dez anos descansado nas praias da sagrada Ílio. Heitor, que não tinha, por causa dos atos de outros, a opção de desfrutar da sua praia, estava salvando o seu país. Dez anos desse esforço deram chance a Aquiles. Isso eu sei explicar, o que não se pode explicar é por que Homero, o mais homérico (agora isso é uma hipérbole) dos poetas, foi tão cruel com Heitor e teve estômago e frieza para cantar essa ignomínia em hexâmetros datílicos, uma métrica até hoje obscura. Não fora capaz de cantar sequer a morte de Aquiles, já o apresentando morto no ínfero, em uma conversa com Odisseu, em um livro menor e posterior. 

Mas Homero nunca foi um moralista. Não quis dar lições na sua bíblia. Em um delírio achou que a humanidade entenderia tudo o que tinha cantado na sua epopeia. Talvez não soubesse que estava escrevendo a bíblia de uma humanidade afastada dele por quase três mil anos no tempo e certamente não sabia do barulho e da fúria que ela criaria. De qualquer forma, a história trágica da humanidade será sempre a de achar que Paris e Aquiles podem nos dar algum tipo de exemplo.

6.20.2018

Direito e micropolítica no Futebol

Entendamos primeiramente o futebol como um jogo que contém relações sociais. Óbvio, temos os jogadores, doravante boleiros, e os árbitros da partida. Os boleiros são definidos pela sua função: participar da vitória do seu time, seu objetivo derivado do objetivo do time (uma coletividade) de vencer o jogo. Os árbitros são o controle de cunho judicial: eles aplicam a lei e têm poder de punir. Bom, se o Direito servisse para alguma coisa além de enriquecer advogados com boa capacidade hermenêutica e retórica, bem como membros do sistema judicial que sucedem em decorar uns códigos, nunca haveria qualquer discussão sobre erros de arbitragem no futebol. Entretanto, basta assistir a qualquer programa de comentários sobre “a rodada” pra saber que essa temática ocupa pelo menos metade deles. E aí, a superioridade da Ciência Política sobre o Direito transborda. Vamos aos motivos.

Primeiramente, o Direito tende a não fazer nenhum tipo de assunção funcional sobre os atores, diremos, jurídicos. Acredita que a lei prepondera em uma sociedade e pode até explicar o seu funcionamento. Evidentemente, não há a menor correspondência com a realidade social esse apego à preponderância da lei, bastando a lembrança de que onde há gente, há crime. Vale a advertência de que eu não sou minimamente atualizado nas discussões academicamente travadas sobre o assunto. Só sei que Hans Kelsen – ele deve ter feito outras coisas importantes – propôs uma ampliação com intenções científicas do Direito, ao levar em conta realidades axiológicas e, de alguma forma, sugerir intencionalidades por parte dos atores. Tirando isso, ao menos nas discussões que acabo fazendo com juristas que conheço, não há muita sofisticação além desse entendimento, exceto quando eles lançam largamente mão de conhecimentos de Sociologia e Filosofia. A Ciência Política, por sua vez, basicamente impõe obstáculos cognitivos intransponíveis a um jurista. E aí, a incapacidade em atribuir funcionalidades aos atores sociais é o que define, nesse contexto, e, principalmente no que diz respeito ao futebol, o Direito. Dito isso, entremos de vez na micropolítica.

Como exposto no início, os atores num jogo de futebol se definem pela sua função. Eles servem para ganhar o jogo. Os árbitros servem para aplicar as regras por meio das suas decisões em reação às decisões que os boleiros tomam. Isso é, a priori, uma modelagem, uma simplificação com intenções de entendimento. A realidade é outra história, à qual chegaremos em breve. Sendo assim, o juiz apita e começa o jogo. Há uma definição clara de que os jogadores farão o que for necessário para ganhar o jogo. Os árbitros terão a função de fazer que eles respeitem as regras. Ganhar o jogo para o árbitro é impedir todas as burlas. Isso parece justo. Mas não há trabalho mais difícil no esporte do que o dos árbitros de futebol. Eles, três são eles, têm que controlar, numa quadra cuja superfície é de cerca de seis mil e trezentos metros quadrados, o equivalente a um campo de futebol (risos), vinte dois boleiros – e agora a primeira concessão à realidade – a maioria deles exemplos claríssimos do que se chamaria de facínora moral. Durante um jogo, boleiros agridem uns aos outros, ofendem-se, fingem que sofreram agressões e ofensas o tempo inteiro, em suma estão os noventa minutos, mais os acréscimos, a fim de enganar a arbitragem. E não precisa ser numa Copa do Mundo. Além do que, experimente jogar uma pelada sem árbitro. A coisa é atroz. Isso acontece até entre crianças. Pelo menos entre os homens. Não posso dizer muita coisa do futebol feminino. Com o perdão do moralismo anterior, voltemos à política, à micropolítica.

O contexto social em que se dá o jogo não permite que o sistema judicial, cuja função, lembremos é o de impedir que algum dos times ganhe por meio de burlas às regras, exerça tal função. Não há enforcement possível no futebol. Usemos outro esporte, o tênis. Num jogo de simples, há dois boleiros (não confundir com a garotada que apanha a bola) e sete árbitros (em alguns torneios pode chegar a doze esse número). A quadra de simples tem pouco mais de 203 m² de área. E os jogadores de tênis são cavalheiros. A única dificuldade no tênis maior do que a do futebol para o sistema judicial talvez seja a velocidade da bola. Então, a conclusão moralista óbvia (e o moralismo figura como elemento de causalidade em qualquer tentativa de explicação do funcionamento da sociedade por um especialista do Direito) é a de que a arbitragem é um problema no futebol porque os boleiros não são éticos. Os facínoras do futebol atrapalham o jogo. Enquanto os cavalheiros do tênis contribuem para a sua beleza. Entretanto, voltando à micropolítica, boleiros se definem funcionalmente da mesma forma. A sua única função é ganhar o jogo. Boleiros, tenistas ou futebolistas, são a mesma coisa. Mas aí, temos um problema empírico. É fato raríssimo num jogo de futebol algum jogador ser ético e abrir mão de uma injustiça que favoreça seu time. Raríssimo! Conversamente, isso sempre acontece no tênis, às vezes até em pontos importantíssimos. Ou seja, essa empiria refuta qualquer hipótese de que os jogadores de tênis e de futebol podem ser definidos, a priori, como a mesma coisa. A priori os boleiros do futebol são facínoras. Os de tênis são cavalheiros. O problema é que nada poderia ser mais errado.

 Atores sociais aprendem enquanto jogam. Não precisamos dizer que houve várias rodadas desde que o futebol surgiu. Não sei bem quanto ao tênis, mas o sistema judicial do futebol é fundamentalmente o mesmo desde sempre. As mesmas regras e os mesmos árbitros. Os boleiros logo perceberam que, dadas as dificuldades do sistema judicial do jogo implementar as regras numa quadra colossal e sobre vinte e dois jogadores, é tremendamente vantajoso tentar burlar as regras. E esse aprendizado veio às custas do amargor das derrotas e do delicioso sabor das vitórias, certamente. Ou seja, há uma história institucional (não propriamente no sentido mais estrito da disciplina) que formatou o comportamento básico dos boleiros nos dois jogos. E o ululante é que esse comportamento se relaciona claramente às condições de controle sobre as ações dos jogadores que pretendem vencer as partidas. As conclusões moralistas, com clamores por mais respeito às regras, por comportamentos mais éticos por parte dos jogadores, além de serem uma pieguice descomunal são mera disfunção erétil.

O leitor certamente notou que foi completamente excluído do nosso modelo a possibilidade do sistema judicial antiético ou parcial, o que é um irrealismo por definição, lembremos. Na Copa da Rússia, apareceu a arbitragem por vídeo. Particularmente, acho a medida um purgante de chata. Atrapalha o andamento do jogo e até agora, não serviu pra nada. As discussões sobre arbitragem ainda são muito frequentes. Mas de qualquer forma, é uma medida que aumenta o poder dos árbitros, ou, sendo mais claro, intenta aumentar os controles sobre o comportamento dos jogadores. Sendo assim, se achamos que o futebol pode apresentar resultados injustos por erros da arbitragem, em vez de clamar por mais ética e fair play, devemos clamar por mais controles.

5.02.2018

Será possível uma micropolítica?

É pertinente dizer que a Ciência Política tem o seu germe mais robusto com o nascimento do Estado nacional, entidade que começou a se formar na Europa quando a dinastia de Avis expulsou os últimos árabes que dominavam o oeste da península ibérica no século XIII e fundou Portugal. A novidade, que se consolida na Europa com a Reconquista no resto da Ibéria (Espanha) e com a finalização das Guerras dos Cem Anos (França e Inglaterra) e dos 30 anos (Países Baixos), foi retumbante na forma de pensar as relações de poder, que desde sempre permearam a vivência coletiva humana. Com o rescaldo da descentralização em arremedos de estados nacionais, quase tribais numa acepção moderna, fundados em algum tipo de moral política muito associada à religião, as coletividades passariam agora a se reunir em torno de um ente que organizaria a economia, a burocracia pública e, fundamentalmente, a guerra, em termos raramente vistos antes. O pensamento político moderno, por sua vez, preocupa-se no início com a questão da legitimidade dessa forma de poder, mas prioritariamente com as regras sobre as quais se estabeleceriam os princípios do funcionamento dessa coletividade. Logo, o pensamento político do começo da modernidade é uma ontologia do Estado Nacional. Primeiro o Jusnaturalismo, que preocupado em dar legitimidade a essa nova formação, justifica seu poder, entendendo que ele se fundamenta na mudança da vivência coletiva sob um estado de natureza para um estado civil. Seja na versão absolutista de Hobbes, seja na versão liberal de Locke, o jusnaturalismo é uma filosofia de legitimação do Estado: da sua preponderância na primeira versão e dos seus limites, na segunda. Filosofia alternativa é proposta por Maquiavel, que, superando as questões de legitimidade, propõe as bases filosóficas do positivismo/realismo análogas ao que posteriormente Descartes chamaria de método científico. De qualquer forma, o pensamento maquiaveliano tem uma proposta de legitimação, apesar de essa ser a da tomada do Estado e não a do próprio Estado, coisa que ele considera, muito como recurso heurístico, um dado da realidade e de forma nenhuma uma elaboração social. Em suma, é em torno do Estado Nacional que se organiza o pensamento político moderno. Andando na História, a Ciência Política, como ciência no século XX, também centra no Estado Nacional, esse ente agora com feições um tanto diversas das do início, a produção do seu conhecimento. Mais contemporaneamente ainda, é sobre as instituições públicas, principalmente as das formas poliárquicas de organização da sociedade que a Ciência Política fundamentalmente versa. É certo que a política, embora tivesse seu locus clássico de manifestação dentro do Estado, perpassava toda a sociedade, na medida em que os grupos dentro dela seriam os atores a disputar o jogo. Assim, mais do que o estudo do próprio Estado, a Ciência Política definiu como o seu objeto efetivo, as disputas pelo controle e manutenção das instituições, pois seria por meio do controle dessas que os atores do jogo político guiariam os resultados para a satisfação dos seus interesses. Ou numa terminologia mais verossímil, seria por meio do controle das instituições governamentais, que os grupos fariam o processo de políticas públicas resultar no aumento das próprias benesses. E por tratar de algo tão amplo, chamemos o final de todo esse desenvolvimento de macropolítica. Em suma, isso sempre foi tão forte no pensamento da humanidade que não é trivial entender a palavra política e as suas derivações dissociadas do Estado e do jogo da sua conquista. E para problematizar esse reducionismo, recorramos novamente à Grécia clássica, lugar e tempo onde se originou a política, ou para evitarmos confusões, a esfera pública. Não há de se duvidar que, como já vimos antes, falar em política na Grécia Clássica era falar de negócios públicos. Mas vimos também, que, por formação intelecto-cultural, o homem grego teria certamente dificuldades de se entender como tendo negócios privados tão dissociados dos públicos, como o homem pós-renascentista. Mas fora do demos, a sociedade grega não era nem um pouco democrática ou liberal. As mulheres geralmente eram confinadas à casa e ao exercício do papel materno e ainda havia escravidão. Nesse sentido, um jogo político fora do demos estava necessariamente determinado pela forte lógica hierárquica da oikos (casa) que fazia o fluxo do poder seguir do patriarca para baixo. O poder é uma relação social entre, pelo menos, duas partes, na qual uma delas só se comporta (pensa, toma posição, age) por causa da outra. É oportuno dizer que há poder em qualquer tipo de relação entre seres humanos. Isso não é dizer, todavia, que a política, entendida como o jogo que visa a resultar na dominação de uma das partes pela outra é o aspecto fundante de todas as relações. Há uma miríade de outros aspectos e se a política fosse o único fundamento possível, a vida em sociedade certamente seria insuportável. Se serve como ilustração, vamos pensar em dois amigos que, num belo dia, saem para bater papo. Um deles é musculoso, o outro franzino. Eles começam uma discussão sobre algum assunto e se veem com opiniões diametralmente opostas. Se o mais forte quisesse, poderia impor a sua opinião pela força, ameaçando o outro de uma agressão, por exemplo. Um dos motivos por que ele não o fará (normalmente) é justo o fato de que os laços fraternos entre os dois são mais importantes para fundamentar a relação do que o desequilíbrio (assimetria) das forças físicas. Genericamente, o instrumento que propicia esse desequilíbrio podem ser vários, mas o ponto fundamental é que a sociedade e a civilização se desenvolvem no intuito de criar elementos que dirimam a importância da política nas relações mais pessoais, justo porque o princípio de funcionamento da política, novamente entendida como o jogo de que se falou acima, é a violência. Daí o direito, a ética, a cultura, a fraternidade, o amor, etc. Entretanto, dizer que o poder não é o fundamento das relações humanas, não quer dizer que ele não seja importante ou até mesmo definitivo em grande parte dessas relações. Um problema no nível epistemológico da Ciência Política para entender ou mesmo reconhecer isso é que essa ciência, e o motivo disso é inicialmente pertinente, modelou a sua unidade de análise como o grupo político, ou o ator político, ou até o homus politico. Esse é um maximizador de poder, análogo ao maximizador de lucros da teoria econômica, evidentemente numa versão bem rasteira. Não se poderia então, por meio dessas assunções entender qualquer relação em que os seus participantes suprimissem o propósito político em favor de algum outro. Ainda sobre isso, o mais problemático é que a maior parte dos Cientistas Políticos não entende que a escolha pelo individualismo é o resultado de um processo social não tão dificilmente inteligível e não uma realidade dada, nem sequer um imperativo categórico. Talvez esse mau entendimento, derivado certamente de má formação filosófica, seja fundamental para que se produza Ciência Política da macropolítica tão ruim no Brasil, resguardadas as brilhantes e necessárias exceções. E isso resulta em coisa ainda pior. Há muito tempo, vi um Cientista Político, atualmente professor de um renomado departamento, fazendo um comentário sobre futebol. Ele disse que era irracional (e cientistas políticos ruins, usam argumento de autoridade para falar de racionalidade) que as torcidas de Náutico e Santa Cruz torcessem (sic) contra o Sport, porque o Sport bem posicionado era um incentivo para que Náutico e Santa Cruz tentassem se posicionar bem da mesma forma. O conteúdo da sentença é tão ridículo que não precisa ser discutido. Mas usar escolha racional para entender decisões de torcedores de futebol é uma das coisas mais estapafúrdias que se pode fazer. Fundamentalmente porque, como dito no artigo anterior, não há racionalidade (no estrito sentido utilizado pela CP) nenhuma em torcer pra um time de futebol. Sendo assim, é completamente artificial e por isso limitada no entendimento mesmo da política, a versão contemporânea e de mainstream da Ciência Política, tanto no nível metodológico, quanto no temático. E só será um bom cientista político aquele que reconhecer as insuficiências da própria área e entender os propósitos dela, que são inescapavelmente parcimoniosos. De qualquer forma, se o arcabouço teórico da Ciência Política aparentemente não oferece muitas alternativas para um entendimento da micropolítica (o que não é necessariamente verdadeiro), não é difícil encontrar tais alternativas na Filosofia Política. O jusnaturalismo nas suas duas versões mais importantes, hobbesiana e lockeana, parte do indivíduo, de um pretenso indivíduo em estado natural. Ou seja, antes da tentativa de legitimação das instituições da vida social, há indivíduos sem o peso ou a ajuda delas, que travam relações claramente políticas. E mais, o pós-modernismo (e assumo aqui a minha implicância com essa visão de mundo e o desconhecimento de muitos detalhes do que ela propõe, mas tenho a impressão de que posso falar dela, porque entendo muito bem a visão de mundo que ela intenciona superar: o modernismo) conseguiu mapear, mesmo sem intenção, os loci onde a micropolítica se dá com mais força: questões identitárias clássicas, de gênero, corporativistas, familiares, discursivas, etc. E aí, voltamos ao arcabouço teórico-metodológico da CP, despido devidamente das suas hipertrofias sobre o papel das instituições externas e formais e do seu paradigma fundamental, a saber: o racionalismo superficial e pedante, que se acha capaz de explicar tudo, inclusive o futebol. Substituem-se todas essas inutilidades pela proposta weberiana, que é um individualismo metodológico sofisticado, preenchido porém pela estrutura axiológica, não a de uma pretensa coletividade, mas a que opera sobre o próprio indivíduo. E aí, um adendo é necessário. Maquiavel fez seu individualismo metodológico enquanto contava umas anedotas n’O príncipe, e focando um tipo específico de ator social, o homem que tenta tomar (ou manter) o Estado, conseguiu claramente apresentar a estrutura axiológica que opera sobre esse tipo de indivíduo, a saber: a imoralidade no que concerne aos meios da ação. Assim, rejeitando a confusão cognitiva promovida pelo pós-modernismo para entender a política, como da mesma forma e com mais veemência o superficialismo racional dos Cientistas Políticos mal formados em Filosofia do Conhecimento, seria interessante que levássemos em conta a proposta weberiana como alternativa para o entendimento das relações mais imediatas entre seres humanos. E talvez todas as outras.