7.07.2019

Heitor, a única possibilidade ética da política

O homicídio de Heitor, o vilipêndio de seu corpo e a exposição do seu cadáver insepulto a cães e aves rapaces, atrocidades perpetradas pelo terrível Aquiles Peleida, são a maior injustiça homérica. Ainda maior do que a degolação de Pátroclo, que, pela temeridade adolescente, mereceu o seu destino. 

O adjetivo homérico é sinônimo de hiperbólico. Diz-se que a Guerra dos Mascates, uma escaramuça, foi um conflito homérico. Uma prova do apego incondicional do recifense à megalomania. Tal equívoco linguístico escamoteia o fato de que a verdadeira bíblia da humanidade é a Ilíada e não os livros de uma obscura seita oriental, nem os da sua mais famosa superstição, a saber: o Falaz Messias Nazareno e seu martírio.

 A verdadeira bíblia conta a história de três homens. A do irresponsável Paris, que por amor, além de Helena, a mais livre das mulheres, trouxe a desgraça da guerra ao seu pai e ao seu povo; a de Aquiles, que só porque era capaz disso, queria destruir tudo desde que isso lhe trouxesse fama; a de Heitor, o homem mais responsável que existiu. Heitor era o príncipe de Ílio, filho de Apolo e seu maior sacerdote. Censurava Paris, pois lhe atribuía a culpa dos atos ignominiosos de Agamenon (o infanticida que degolou a própria filha para satisfazer a lascívia de uma atroz financiadora de sua campanha). Agamenon queria por as divinas muralhas de Troia abaixo e matar a todos os troianos. Graças aos malignos artifícios de Odisseu (que fora devidamente castigado por Posido durante treze anos) triunfou nesse objetivo iníquo, mas evidentemente, só depois do que aconteceu a Heitor. Esse tinha um lema de vida, exposto em um terceto: ame o seu país, honre o seu pai e respeite os deuses. Paris não tinha país. Fora mandado ao exílio ainda bebê e se esqueceu de onde vinha. Aquiles era um homicida irado. Foi o primeiro bárbaro da história. Ia aonde estava Ares, o confuso.  

E por isso é Heitor quem apresenta a melhor definição normativa do que é a política, isto é, o primeiro e único verso da sua epopeia. Política se faz com uma ética de responsabilidade pública. Maquiavel, a reencarnação renascentista de Heitor (de fato ele veio um pouco pior, embora o florentino fosse uma ficção da Teoria Política) escreveu o seu Príncipe, no qual ele estranhamente ignora Heitor, preferindo Eneias, e no capítulo derradeiro dessa obra, exortou Lourenço de Médici à luta contra os bárbaros que ameaçavam a Itália. Lourenço só era magnífico nas bajulações maquiavelianas. Não leu O Príncipe, e a Itália se manteve uma terra de desordem por mais trezentos anos. 

Heitor Homicida sucumbiu, ignorando o fato de que Hécuba nomeara seu monstro, frente a Aquiles, o terrível, o matador de homens. Além de artifício das Moiras, os motivos da derrota de Heitor para Aquiles são óbvios; enquanto esse último, por ter Agamenon lhe negado um troféu apolíneo, mas que ele entendia afrodisíaco, passou mais de dez anos descansado nas praias da sagrada Ílio. Heitor, que não tinha, por causa dos atos de outros, a opção de desfrutar da sua praia, estava salvando o seu país. Dez anos desse esforço deram chance a Aquiles. Isso eu sei explicar, o que não se pode explicar é por que Homero, o mais homérico (agora isso é uma hipérbole) dos poetas, foi tão cruel com Heitor e teve estômago e frieza para cantar essa ignomínia em hexâmetros datílicos, uma métrica até hoje obscura. Não fora capaz de cantar sequer a morte de Aquiles, já o apresentando morto no ínfero, em uma conversa com Odisseu, em um livro menor e posterior. 

Mas Homero nunca foi um moralista. Não quis dar lições na sua bíblia. Em um delírio achou que a humanidade entenderia tudo o que tinha cantado na sua epopeia. Talvez não soubesse que estava escrevendo a bíblia de uma humanidade afastada dele por quase três mil anos no tempo e certamente não sabia do barulho e da fúria que ela criaria. De qualquer forma, a história trágica da humanidade será sempre a de achar que Paris e Aquiles podem nos dar algum tipo de exemplo.

2 comentários:

Agavebê disse...

Homero tem uma narrativa moral zoastrista;
Heitor é um republicano empático por demais;
Aquiles é amoral e Paris um Dom Juan dionisíaco.

Unknown disse...

Homero alimentou o imaginário da antiguidade até que Santo Agostinho tornou-o inócuo e substituiu seus heróis por Cristo.E este cumpriu sua função inspirando os heróicos cavaleiros da Idade Média. A modernidade na qual não há lugar para heróis, vislumbra essas duas eras mergulhada numa dialética insolúvel muito bem desenhada neste texto.