Filosofia Política e Ciência Política, muito além e aquém da Filosofia e da ciência
11.18.2016
É a História, maledetto
Num país de tradição legalista (não sei se há termo melhor, mas se for esse é no pior sentido que essa palavra pode ter) como o Brasil, onde qualquer mudança social sempre parece exigir um amplo rearranjo legal, a reforma política tem sido um tema dos mais batidos, quando medianamente tendemos a concluir que o resultado do nosso processo sócio-político não é o melhor. Antes de tudo, quando buscamos dados que quantificam esses resultados, não é impertinente constatar que os vinte anos pós 88, ou mais especificamente, a situação que alcançamos em termos de bem estar, seja a melhor da História do país. A referência aqui é o desenvolvimento humano, que sintetiza, a partir de dados censitários, os níveis médios de saúde, educação e renda da população. Quem quiser checar os dados, vá ao Atlas de Desenvolvimento Humano (www.atlasbrasil.org.br), página em que se encontram detalhadamente as informações acima. A conclusão mediana sobre esse assunto é a ideia de que o tudo que tem de ruim no Brasil é um problema derivado das regras que regem o sistema político. Ou, mais especificamente, o arcabouço legal e institucional que rege o processo político brasileiro é o responsável por tudo o que está aí. A decorrência mais óbvia dessa conclusão é a de que precisamos de uma reforma que faça as instituições gerarem resultados ótimos ao ponto de tornar o Brasil o melhor país do mundo para se viver sob qualquer classificação que gradue os países em qualidade de vida. O elemento mais interessante desse debate é que ele seduz boa parte da esquerda, que chegou à conclusão de que o seu maior partido não conseguiu trazer o paraíso à sociedade brasileira, justo porque o arcabouço citado acima não era bom o suficiente. O PT, segundo a narrativa de certos elementos da esquerda, sucumbiu às regras excludentes da democracia representativa, que permitem que pessoas votem em políticos ruins ( tal definição de político ruim é coisa célebre, mas não tentarei discorrer sobre ela). Assim, bastará uma reforma política, para que tudo se resolva.
Toda a vez que alguém atribuísse às reformas institucionais esse tipo de caráter panaceico, um exemplar de Comunidade e Democracia (Putnam, Robert D. (2005). Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: FGV) deveria cair violentamente na cabeça do sujeito, de preferência causando uma concussão, ou pelo menos um sangramento relevante. Para diminuir essa minha expectativa violenta, mas muito justa, vamos a esse livro. Publicado pela primeira vez na década de 90 por Robert Putnam, professor de Harvard, Comunidade e Democracia vai tratar de uma ampla reforma institucional, de caráter político-administrativo, iniciada e quase completamente finalizada no início da década de 70 na Itália. Para quem eventualmente não saiba, a Itália é um Estado unitário, dividido em vinte regiões. O problema que a reforma queria atacar era justamente o centralismo, que fazia o processo político em geral, mas especialmente o de políticas públicas seguir uma ordem do centro (Roma) às regiões. Elaborou-se então um desenho institucional que pretendia dar às regiões mais autonomia política, transformando o país numa federação incipiente. Ao que parece, compreendia-se que o relativo atraso econômico de algumas regiões era o resultado do fato de que era em Roma que se decidiam coisas como a regulamentação do trânsito de barquinhos em Veneza, ao norte, ou coisas como o plano de evacuação de Taormina, quando da próxima erupção do Etna, ao sul. Desenho institucional elaborado, então a sua realização. As regiões italianas agora teriam governos autônomos, da Ligúria até a Sicília. Dado que os resultados em termos de mudança, coisa de dez ou quinze anos depois dessa grande reforma institucional foram irrelevantes, ou seja, quem era relativamente atrasado ou adiantado permaneceu mais ou menos onde estava, Putnam resolveu fazer sua análise. Ele notou que havia um padrão de desenvolvimento econômico, que se relacionava à posição que a região ocupava geograficamente em relação ao Lácio: no norte riqueza, no sul, pobreza. Mas o ponto fundamental, lembremos, é que não havia diferença relevante de desenvolvimento relativo ao tempo anterior às reformas. Não se sabe que maçã bateu na cabeça de Robert Putnam para que ele resolvesse recorrer à mãe de todas as disciplinas das humanidades, a História, para achar alguma resposta que pelo menos servisse de hipótese explicativa dessas diferenças regionais na Itália. Ele voltou ao século XI depois de Jesus e começou a contar duas histórias.
A primeira se passava no Sul, onde por volta dessa época uma horda normanda tomou a Sicília, expulsando uns árabes mal encarados que por lá estavam e a partir de Palermo, dominou regiões peninsulares até a atual Campanha. Esses bárbaros, que tinham parentesco, a essa época já longínquo, com Vikings instalaram um reino de feições autocráticas e centralistas que manteve mais ou menos intacta uma estrutura socioeconômica fundada em relações de vassalagem. Além disso, manteve vivas as rivalidades regionais, fazendo o básico do mandamento divide et impera. A história andou e mesmo com outros domínios, o sul da Itália manteve essas características até José Garibaldi, depois de Anita (sim, aquele mesmo que interpretou Tiago Lacerda na Casa das Sete Mulheres) desembarcar em Palermo e juntar o que restava da polity ao recém-unificado reino da Itália.
A outra história também começa por volta dessa época, mas se deu ao Norte do Lácio. E começa com o espólio do Sacrossanto Império Romano Germânico, que nunca foi propriamente império de coisa nenhuma (as más línguas dizem que nem foi sacrossanto, nem império, nem romano, nem germânico), quando cidades (o termo mais científico é polities) começam a adquirir relativa autonomia e, logo em seguida noções mais robustas de comunidade. Essas noções tiveram origem nas associações voluntárias que se formaram quando grupos de vizinhos juraram se auxiliar mutuamente com vistas à proteção comum e à cooperação econômica. Tal associativismo incipiente definiria a organização política das grandes cidades setentrionais como Florença, Milão, Bolonha, Gênova e Veneza. Ainda que esse tipo de organização não pudesse ser chamado de democracia numa acepção moderna, havia um arranjo que possibilitava que ao menos uma pequena parcela dos habitantes participassem das discussões sobre os assuntos públicos. O ponto fundamental é que havia um liberalismo econômico incipiente, mas que tornava mais horizontais as relações entre os cidadãos. Nesse contexto que também se manteve mais ou menos estável até a Unificação, observados os percalços históricos, como grandes epidemias e guerras que assolaram a região, no norte da Itália foi possível surgir uma relevante comunidade cívica (ou comunidades cívicas, dado que as cidades eram normalmente independentes umas das outras). Lembremos também que é no Norte da Itália, onde a humanidade “renasce” e começa a pensar em várias das coisas que fundamentam a civilização contemporânea.
Tais condições eram uma novidade retumbante numa Europa ainda dominada por formas socioeconômicas feudais e por formas políticas autocráticas, fossem temporais, como o próprio Reino Normando no sul da península, ou fosse a forma ensejada pela Igreja Católica. Mas antes que se deduza qualquer tipo de determinismo histórico (reconheça-se que o título desaforado desse ensaio também tem parte nisso), essa sucinta análise histórica empreendida por Putnam teve basicamente o propósito de ajudar a esclarecer o conceito pelo qual o seu livro é mais conhecido, a saber: capital social. Correndo os riscos da simplificação, capital social significa basicamente a confiança que cidadãos têm uns nos outros. A ideia de ser um capital, enfatizada pelo próprio Putnam é a de que a confiança é um bem que diminui os custos das relações sociais, quando por exemplo, um sujeito empresta, fora do sistema financeiro formal, dinheiro ao outro. Num caso desses, os custos bancários da transação econômica foram cortados. Enfim, a conclusão é a de que, sob um arranjo institucional construído sob os auspícios da democracia liberal moderna, a tendência é que a sociedade progrida material e institucionalmente, quanto mais baixos forem os custos das relações sociais que se travam dentro dela.
E para concluir, dois pontos: o primeiro versa sobre o fato de que certas ciências nas humanidades, graças a uma série de coisas, mas fundamentalmente ao positivismo ingênuo, que leva à matematização embusteira, tendem a ignorar completamente o conhecimento histórico, taxando-o de inútil, porque não científico. Bom, nesse ponto é bom advertir que Comunidade e Democracia é um estudo com certos toques de matematização, já que uma das suas propostas é justamente quantificar a confiança, por meio do conceito de capital social. E não só isso; até de testes de correlação, acompanhados de gráficos de dispersão adequados ele se utiliza na análise. Assim, o autor subordina a matematização às necessidades explicativas da sua Ciência Política, o que é muito mais útil no propósito de se produzir conhecimento, do que ficar fazendo econometria sofisticada até o paroxismo da arrogância de se tentar explicar a própria Matemática.
O outro ponto são alguns questionamentos aos neo-reformistas basileiros: será que eles entendem que os resultados atuais do nosso processo social tem fortes condicionantes históricos? Será que eles entendem que começamos tal processo com uma estrutura socioeconômica feudal na forma e escravista no conteúdo? Que mudamos logo depois para uma estrutura agrário-mercantilista na forma e ainda escravista no conteúdo? Será que eles entendem que a República Brasileira foi fundada por um golpe militar, que derrubou uma Monarquia, que apesar do seu elitismo, era constitucional e principalmente os motivos que levaram a isso? Será que eles entendem que foi necessário uma ditadura de feições fascistas para criar direitos trabalhistas numa sociedade protocapitalista, que ainda iniciava seu processo de urbanização? Será que eles entendem que o arranjo institucional posterior a essa ditadura fascista, que almejou a democracia, não foi capaz suportar uma elite que, perdendo privilégios, viu numa ditadura militar a salvação das suas posições? Será que eles entendem que, finalmente depois de vinte anos dessa ditadura, de saldo geral sofrível em termos civilizatórios e de bem estar, a sociedade começou a se organizar com vistas a se tornar uma socialdemocracia, em que direitos sociais e políticos deveriam ser paulatinamente ampliados e amplificados? Será que eles entendem que o fato de estarmos hoje na nossa melhor situação civilizacional e de bem-estar, tem muito a ver com o arranjo criado na Constituição de 88, que foi uma reação ao modelo extremamente conservador imposto à sociedade pelos militares?
Não há dúvidas que certas reformas pontuais no arranjo institucional brasileiro devam ser feitas ou pelo menos apoiadas. Mas o que deve sempre se ter em conta é que o arranjo institucional sempre explicará apenas uma parte das coisas. Portanto, quando alguém vier lhe dizer que tudo precisa ser mudado porque nada presta (e é impressionante como economistas são ainda mais ativos nisso que os próprios cientistas políticos), em homenagem a Putnam, mas principalmente em homenagem ao país maravilhoso, porque culinário, que é a Itália, diga pra ele, ainda que com a entonação e o sotaque de Terra Nostra: estude a História, maledetto!
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Um comentário:
o império germânico é uma farsa, que veio culminar na arrogância "reichana" de Hitler (perdão pelo neologismo) ... Império como a história define, eles nunca foram. Excelente texto!!!
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