Filosofia Política e Ciência Política, muito além e aquém da Filosofia e da ciência
11.12.2016
Meio liberal, meio autoritário: as desventuras platônicas do economista de mainstream brasileiro
Quando John Locke publicou o seu Segundo Tratado Sobre o Governo, o absolutismo inglês, que tivera seu auge com Henrique VIII e Elizabete I, coisa de cem anos antes, já tinha se tornado quase completamente a peça decorativa que perdura até hoje. É nesse livro que se encontra a primeira elaboração consistente do liberalismo político, corrente filosófica que com outras, forma o ethos da contemporaneidade ocidental. Na época da publicação do Segundo Tratado, não se podia afirmar com certeza sua autoria, já que a obra fora publicada como documento apócrifo. Não se tinha nenhuma dúvida, entretanto, que a filosofia política que propunha, ao menos uma delas, o liberalismo, era um libelo contra a tirania do absolutismo monárquico e, de nenhuma forma como externalidade, contra a propriedade estatizada, que na verdade era o controle da economia e da produção pela monarquia inglesa e seus próceres da nobreza, situação de política econômica que sob o risco de alguma perda de precisão pode ser definida como mercantilismo.
Coisa de cem anos depois, quando a Marinha Real já tocava o terror pelos mares, a fim de abrir mercados para a incipiente indústria britânica, o pensador escocês Adam Smith publicou a sua Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, obra cujo fundamento é uma derivação do segundo alvo, digamos assim, da crítica contida no programa filosófico iniciado por Locke. Voltando ao século XVII, é taxativo que as preocupações de Locke eram muito mais de ordem político-civil do que propriamente econômica. Atirando contra a tirania, ele propunha como direito natural do ser humano, ou mesmo do indivíduo, gozar de uma esfera em que a coletividade, nesse contexto histórico, representada pela tirania absolutista dos reis de antes, não tivesse qualquer governança daí o entendimento de que a propriedade privada era um direito natural. Sendo assim, o programa filosófico que chamamos de liberalismo é necessariamente um programa que se insurge contra as formas autocráticas (para atualizar o conceito de tirania) de governo e Estado, porque essas formas negam ao ser humano, ao indivíduo e por fim ao cidadão, a sua esfera protegida do interesse de uma pretensa coletividade. A riqueza intelectual da Riqueza foi reduzida a uma plêiade de frases feitas e a um conceito caricato – a assustadora e alvissareira ao mesmo tempo mão invisível do mercado – e muitos economistas contemporâneos, com as atualizações, transliterações e transmutações devidas, são basicamente repetidores dos resultados dessa operações filosóficas de validade bastante questionável. Aí resolveram juntar isso ao paroxismo da sofisticação matemática, duma forma que a econometria atualmente parece ter perdido o propósito para que foi desenvolvida: entender a economia. Mas não desviemos o assunto em pauta, pois voltaremos a isso logo.
Em um texto célebre, o filósofo político italiano Norberto Bobbio faz uma comparação entre o liberalismo velho e o liberalismo novo. E chega nesse ensaio a uma conclusão meio inquietante, a saber: se o liberalismo velho era uma crítica ao absolutismo, o liberalismo novo foi uma crítica à social democracia. Ou mais especificamente, se o liberalismo velho se insurgia contra uma realidade política autoritária, para se dizer o mínimo, o liberalismo novo se insurgia contra uma realidade política elaborada democraticamente. Ainda mais especificamente, Nobbio sugeriu que os economistas da terceira e quarta quadra do século XX flertavam com um projeto que rejeitava o que as sociedades tinham construído por meio das urnas. Em interlocuções recentes com economistas brasileiros de mainstream, uma coisa que tem me incomodado é a guinada à direita em que essa comunidade epistêmica tem embarcado. De certa forma devido ao rescaldo do desenvolvimentismo brasileiro, pensamento econômico que se revelou com uma quantidade imensa de problemas quando foi realizado, principalmente pelo governo Dilma, os economistas de mainstream, liberais, resolveram primeiro tomar parte nas aventuras do governo Temer, que se não é propriamente autoritário, está muito longe de ser democrático. Além do que, essa aventura ainda se caracteriza pela reunião sob sua tutela uma série de figuras incapazes de pensar a sociedade de uma forma minimamente progressista, tanto no executivo, quanto (e principalmente) na sua base de sustentação no legislativo. E mais sério ainda é que esse tipo de ator político esteve no centro da conspiração que retirou Dilma Roussef do poder. E não nos esqueçamos de que essa base e mesmo as figuras do executivo já estavam se manifestando há tempos já no governo da petista, mas isso é assunto para outro texto. E embora não seja lá muito nova, continua a chamar atenção essa certamente estranha simbiose entre proponentes, ainda que tardios, de um programa filosófico necessariamente não conservador e o conservadorismo brasileiro, que como se tem visto na recente polarização político-partidária que vem se manifestando no Brasil desde 2013, tem boa parte das suas hostes tomadas por elementos ontologicamente reacionários, que em muitos casos não perdem a chance, inclusive, de sugerir soluções abertamente autoritárias. E muito mais explicativo que o rescaldo desenvolvimentista, que se insere em um rescaldo mais geral do próprio esquerdismo no Brasil, é a proposta de supressão da política que as direitas sempre gostam de apresentar. A esquerda também tem sua proposta de supressão da política, mas enquanto essa é um telos, ou seja, no fim todos serão tão iguais que a política não fará mais sentido, aquela tem uma proposta de supressão da política que já se inicia no meio. Se a política é uma luta entre desiguais, em que os menos poderosos almejam primeiramente mitigar o desequilíbrio, o conservador tende sempre a rejeitá-la, dado que é sempre por meio da política que a mudança (a grande fobia do conservador) acontece. Tanto é que a primeira pecha que políticos à direita põem em manifestantes contrários ao seu governo é a de movimento político.
E aí, onde é que entram os economistas de mainstream? Não é nova na civilização a discussão entre a técnica e a política na administração dos negócios públicos. Remonta aos gregos, mais precisamente a Platão, que propunha como melhor forma de organização social, a aristocracia. A palavra aristo é uma derivação da palavra arete, que significa excelência, virtude, distinção. Assim, aristocracia, em vez de significar um determinado grupo social, como se pensa na atualidade, quer dizer poder dos excelentes, dos virtuosos, dos distintos. Sob o risco de incorrer em simplismos, a proposta platônica para a sociedade era aquela em que os mais capazes intelectualmente deveriam governar os menos capazes, pois tomariam melhores decisões. Diferentemente de outras ciências humanas mais estabelecidas, como a Ciência Política, a Ciência Econômica tem um fortíssimo viés normativo. Lembremos que a Economia é a ciência que estuda a administração dos recursos escassos e como não poderia deixar de ser, os economistas costumam se entender como os mais capazes no ofício de entender como se devem gerir os recursos escassos que as famílias produzem e vão parar nas mãos da coletividade. E se eu domino a ciência que diz como deve ser o processo que vai desde a produção de riqueza pelas famílias, passa pela apropriação de parte dessa riqueza pelo Estado e acaba no gasto feito por esse mesmo Estado, eu sou a salvação da lavoura, às vezes até literalmente. É bastante razoável então, conservar a pia crença de que eu devo aconselhar os governantes na busca das melhores decisões que levarão a um mundo melhor, já que enquanto a política é eivada do ranço ideológico e o meu processo é racional, imparcial, objetivo, fundamentado em dados e econométrico é ululante que do meu processo resulterão as melhores decisões sociais. As melhores decisões serão as minhas, porque eu sou um cientista. Ou seja, uma proposta platônica (aristocrática, na acepção mais primária do termo) de supressão da política dos cientistas econômicos e a outra a do conservadorismo de qualquer espécie são o cimento dessa nova, mas muito arcaica simbiose.
Mas ainda assim, isso permanece estranho, na medida em que o fundamento filosófico da Ciência Econômica é o mesmo que vai se associar à ideia de democracia e se transmutar na democracia liberal, aquele sistema que no seu tipo ideal, como muito sabe a Ciência Política, promove a ampla participação dos cidadãos nos negócios públicos, ainda que sob os limites da representação e ainda promove a ampla possibilidade de contestação por parte dos cidadãos ao poder político estabelecido, ainda que sob os limites da representação, da mesma forma. E é por esquecer, quando não ignorar, que a teoria de propósito científico que baseia a Ciência Econômica é parte do programa filosófico liberal, que economistas de mainstream, são liberais incompletos; no máximo dos máximos, meio liberais. Então, quando um esquerdista desinformado tentar ofender algum economista de mainstream de liberal, saiba que aí se comete um erro. E erro não porque crítica, mas porque elogio.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário